Em recente congresso internacional – em Curitiba - da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) defendeu-se insistentemente a centralidade da literatura e da teoria literária contra a “praga multicultural”; em recente encontro nacional – em Niterói – da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Letras e Linguística (ANPOLL) debateu-se intensamente outros mecanismos de inovação da pesquisa na área, como uma condição de enfrentamento aos imperativos das políticas de fomento científico no Brasil.
A centralidade da literatura e da teoria proposta pelos organizadores e tematizada nas conferências plenárias procurou sustentar-se a partir de argumentos tais como a substituição estratégica da literatura comparada tal como pensada em academias norte-americanas pela noção goetheana de literatura mundial, observando-se o papel jogado pelas instituições literárias e a construção de estados modernos e pós-coloniais, a emergência de literaturas antigas e apagadas pelo imperialismo literário e cultural, a exemplo das novas traduções de literatura chinesa, árabe, entre outras línguas, além da eleição do gênero romance como condição de possibilidade de se dramatizar as situações críticas nacionais e em prol da elaboração de novos roteiros de enfrentamento à globalização cultural.
Acrescentar-se-ia ainda, em defesa daquela centralidade, a necessidade de criação de centros de tradução de línguas e literaturas, destruídas ou apagadas tanto pelo imperialismo linguístico quanto pela vinculação da literatura e suas instituições ao aparelho estatal.
Considerando que as agências de fomento científico no Brasil definem suas linhas de financiamento a partir de um imperativo do mercado e uma ordem capitalista, cujos projetos, cursos, pesquisas jamais mudem essa ordem, mas envolvam-se na sua retroalimentação permanente e na ilusão de que essa é a via para a democratização dos acessos e distribuição de riqueza, as reflexões levantadas por coordenadores de programas de pós-graduação na área de letras e linguística e seus grupos de trabalhos científicos, além de apontar o amplo espectro das pesquisas e suas tendências, as contribuições para as ciências humanas em geral, fazer ciência em linguística, antes de se pretender “uma teoria das cordas”, é levar adiante a criação de uma linguística libertária; fazer ciência, em literatura, é criar as condições para a suspeita permanente, inclusive dos próprios sentidos e atividades de suspeitar.
A inovação na área, portanto, antes de ser apenas a criação de patentes envolvendo o ensino de língua portuguesa em escolas de países do MERCOSUL, seria, antes, comprometer as instituições linguísticas e literárias na mediação das narrativas, testemunhos e modos de vida contra um modo de vida fetichista e hegemônico, investir na criação de outro perfil profissiográfico dos estudantes de letras, em tempos de institucionalização da malha cultural no Brasil, e suas demandas por direitos, gestão, política e produção culturais, além de criação de outra pedagogia da apropriação de elementos da hegemonia cultural, por exemplo, os videogames, e incorporar personagens literários, mecanismos de leitura, formas de esvaziamento semântico, entre outros, dignos de um campo de conhecimento que fundou o simbólico – através da descoberta do signo – como garantia não apenas da politização da relação entre real e imaginário, mas principalmente como uma letra combativa no cerne da conjunção fetichista que envolve formas de representação da realidade e a realidade, ela mesma, enquanto forma de representação.
Dito isto, o que seria pensar e praticar cultura literária como no alcance de todos? Retomando o texto Modos de se aquilombar, modos de se acomunar: produções literárias de periferias como retorno em diferença da vida estético-política no Simpósio Afro-Rizomas: literaturas afro-brasileira e africanas de língua portuguesa do XII Congresso da ABRALIC, acima mencionado, começaria evocando as letras de rappers de Alagoinhas transformadas em livros de poemas, que somados aos livro-fuzil de comunidades de rappers de São Paulo, às fulgurações exu-poéticas do movimento Blackitude de Salvador, entre outros, teríamos um exemplo de como produzir uma literatura com máxima potência de suspeita, e na própria língua da colonização (não esquecemos o gesto de José de Anchieta de ir à comunidade indígena, organizar uma gramática da língua tupi, trazer pra dentro dessa língua os valores do medievalismo cristão e desenvolver uma pedagogia da memorização e da repetição dos valores culturais europeus como condição para salvar aquela gente sem deus, sem lei nem rei), língua da dominação dobrada, por dentro, além de vislumbrar, em cada comunidade suburbana brasileira, uma rede de modos de produção, divulgação e consumo. Ou seja, não só estamos em condições de pensar outra literatura como bem simbólico diferencial, mas de tornar visíveis outras instituições literárias, outros modos de produção, geração de riqueza e mercantilização literária e cultural.
Sendo assim, e do ponto de vista de uma crítica cultural como técnica de arrombamento e ocupação de espaços epistemológicos, não se trata mais de opor crítica literária à crítica cultural, estudos de literatura a estudos de cultura, centralidade da literatura e a exigência de tradutibilidade de literaturas árabe e chinesa para leitores de sabrinas, biancas e telenovelas ou ainda a exigência da verdade teórico-literária para iluminar os caminhos de leitores com pouco acesso aos valores universais e imperecíveis da natureza humana, mas de fazer emergir em qualquer texto cultural, em qualquer forma de representação, seu modo de funcionamento literário, i.e, o esvaziamento do sentido e o deslocamento dos espaços de poder.
Em vez da centralidade dos estudos literários com suas instituições conformistas e aliadas ao capital e seus fetiches, ou ainda, apostando na generosidade do capital relativa à criação dos centros de tradução de línguas e literaturas não-ocidentais em todos os estados do Brasil, para que uma cultura libertária imploda o próprio sistema portador dessa generosidade, façamos, articulemos, visibilizemos as múltiplas conexões literárias: autores anônimos que não cessam de utilizar todos os meios materiais, digitais, como condição de outros aquilombamentos, outros procedimentos commmunards.
Uma nova esperança literária começa a tomar forma, entre nós, através do movimento “fome de literatura” e seu engajamento na institucionalização da malha cultural no Brasil. Mais de 5000 municípios e seus planos decenais de cultura, onde o segmento literário pode jogar um papel decisivo: cooperativa de escritores, legião de leitores, mercado literário alternativo, bibliotecas itinerantes, pontos de leitura, movimentos de saqueamento de sentidos, arrombamento das formas estéticas, ocupação de espaços de produção. Enfim: apropriação, pelos trabalhadores, da matéria prima, da máquina e da fábrica das letras, como forma de distribuição material e simbólica da riqueza!
thiago do posto
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